segunda-feira, 27 de setembro de 2010

A História de Nicolau


Conta-se que há muitos séculos num povoado distante vivia um homem, o mais antigo morador do lugar. Nicolau era o seu nome. Por ser antigo e conhecer tudo e todos, foi dado a ele a tarefa de atender os peregrinos e também moradores do povoado.

Era comum que as caravanas precisassem de lugar para abrigar as pessoas, além do fornecimento de comidas e outras ajudas contra as tempestades e doenças

Dado a importância do cargo Nicolau desfrutava de status era recompensado recebendo contas, a moeda da época. Servir para aquele povo era a tarefa mais ilustre e nobre.

Passaram-se anos e nicolau a todos atendia com presteza, o que lhe conferia muito respeito e admiração. De repente, Nicolau começou a entediar-se da tarefa. Sentia-se cansado, e começava a não ter tanta disponibilidade nem paciência suficiente para ouvir os problemas dos outros, e começou a falhar na execução de suas tarefas.



De tanto que serviu Nicolau achou que merecia ser agraciado. E passou a alimentar um sonho de que um dia ainda em vida merecia ver o seu Deus. E então, começou a meditar por horas a fio numa maneira de encontrar e estar perto do seu Deus. Envolveu-se tanto a ponto de de rejeitar prestar o atendimento que lhe era solicitado.

Absorvido nos seus pensamentos, um dia se indispôs com um peregrino que não ficou satisfeito com o atendimento que recebeu e reclamou veementemente de Nicolau. Por sua vez Nicolau tratou o cidadão com grande descortesia. Nicolau decidiu que, naquele dia não atenderia a mais ninguém, e comunicou a decisão tomada à sua mulher.

A noite já estava caindo, quando alguém bate à porta com muita insistência. Irritadíssimo Nicolau vai atender com muita má vontade. Depara-se com um cidadão acompanhado de sua jovem esposa em avançado estado de gravidez. Senhor, por Deus me ajude, minha mulher sente dores, precisamos pernoitar aqui, nos indique onde poderemos nos acomodar! Falou angustiado o cidadâo.

Nicolau irritado disse: Nada posso fazer pelo senhor, todas as pousadas estão lotadas"
Humildemente o cidadão perguntou: Senhor e no seu quintal não teria um lugar que nos acomodasse?

Mais irritado ainda Nicolau respondeu:O que...? eu nem o conheço e vou abrigá-lo na minha casa? Nem pensar...

A mulher de Nicolau compadecida com a situação da jovem senhora tentou interferir a favor do casal, o que deixou Nicolau muito mais irritado.

Meu amigo, bradou Nicolau: estou muito ocupado com minhas orações não tenho tempo a perder. Se quiser pernoitar aqui vá lá para aquelas bandas, disse apontando um local a esmo, que o senhor por certo encontrará um local.

E assim o casal saiu se dirigindo ao local indicado por Nicolau.

No dia seguinte o povoado amanheceu com um ar de mistério, diferente. As pessoas sentiam mas não sabiam explicar. Algo muito sutil e diferente emanava de um deerminado local, atraindo a atenção de todos. Curioso, Nicolau também foi atraído para ver o que tinha ocorrido.

Lá chegando inexplicavelmente sentiu-se envolvido pelo ar suave de mistério, sem que soubesse o por quê de tudo aquilo. Nicolau estava contemplativo tentando entender o que ocorrera, quando ouviu uma voz suave sussurrando:

Nicolau que pena! Você ajudou tantas pessoas atendendo com tanto desvelo. Sonhou tanto em encontrar o seu Deus, como forma de ser recompensado por toda dedicação. Tantas foram as oportunidades desperdiçadas....Mas, ontem, quando esteve diante de sua maior oportunidade deixou de atender àquele que veio ao mundo para servir a todos sem nada pedir...


sábado, 11 de setembro de 2010

Sobre a hostilidade



"Tanto que eu tenho falado, tenho que tenho escrito - como não imaginar que, sem querer, feri alguém? Às vezes sinto, numa pessoa que acabo de conhecer, uma hostilidade surda, ou uma reticência de mágoas".
Rubem Alves


Urubus e Sabiás




Rubem Alves

"Tudo aconteceu numa terra distante, no tempo em que os bichos falavam... Os urubus, aves por natureza becadas, mas sem grandes dotes para o canto, decidiram que, mesmo contra a natureza eles haveriam de se tornar grandes cantores. E para isto fundaram escolas e importaram professores, gargarejaram dó-ré-mi-fá, mandaram imprimir diplomas, e fizeram competições entre si, para ver quais deles seriam os mais importantes e teriam a permissão para mandar nos outros. Foi assim que eles organizaram concursos e se deram nomes pomposos, e o sonho de cada urubuzinho, instrutor em início de carreira, era se tornar um respeitável urubu titular, a quem todos chamam de Vossa Excelência.
Tudo ia muito bem até que a doce tranqüilidade da hierarquia dos urubus foi estremecida. A floresta foi invadida por bandos de pintassilgos tagarelas, que brincavam com os canários e faziam serenatas para os sabiás... Os velhos urubus entortaram o bico, o rancor encrespou a testa , e eles convocaram pintassilgos, sabiás e canários para um inquérito '
- Onde estão os documentos dos seus concursos?' E as pobres aves se olharam perplexas, porque nunca haviam imaginado que tais coisas houvessem.
Não haviam passado por escolas de canto, porque o canto nascera com elas. E nunca apresentaram um diploma para provar que sabiam cantar, mas cantavam simplesmente...
— Não, assim não pode ser. Cantar sem a titulação devida é um desrespeito à ordem. E os urubus, em uníssono, expulsaram da floresta os passarinhos que cantavam sem alvarás... MORAL: Em terra de urubus diplomados não se houve canto de sabiá."

O texto acima foi extraído do livro de Português mod. 4 NUPEP-UFPE - Centro de Educação Recife , 2001 pág. 28


quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Você é um Número


Se você não tomar cuidado vira um número até para si mesmo. Porque a partir do instante em que você nasce classificam-no com um número. Sua identidade no Félix Pacheco é um número. O registro civil é um número. Seu título de eleitor é um número. Profissionalmente falando você também é. Para ser motorista, tem carteira com número. e chapa de carro. No Imposto de Renda, o contribuinte é identificado com um número. Seu prédio, seu telefone, seu número de apartamento - Tudo é número.
Se é dos que abrem crediário, para eles você é um número. Se tem propriedade, também. Se é sócio de um clube tem um número. Se é imortal da Academia Brasileira de Letras tem número da cadeira.
É por isso que vou tomar aulas particulares de Matemática. Preciso saber das coisas. Ou aulas e Física. Não estou brincando: vou mesmo tomar aulas de Matemática, preciso saber alguma coisa sobre cálculo integral.
Se você é comerciante, seu alvará de Localização o classifica também.
Se é contribuinte de qualquer obra de beneficência também é solicitado por um número. Se faz viagem de passeio ou de turismo ou de negócio recebe um número. Para tomar um avião, dão-lhe um número. Se possui ações também recebe um, como acionista de uma companhia. É claro que você é um número no recenseamento. Se é católico recebe um número de batismo. No Registro civil ou religioso você é um número. Se possui personalidade jurídica tem. E quando a gente morre, no jazigo, tem um número. E a certidão de óbito também.
Nós não somos ninguém? Protesto. Aliás é inútil o protesto. E vai ver meu protesto também é número.
Uma amiga minha contou que no Alto do Sertão de Pernambuco uma mulher estava com o filho doente, desidratado, foi ao Posto de Saúde. E recebeu a ficha com o número 10. Mas dentro do horário previsto pelo médico a criança não pode ser atendida porque só atenderam até o número 9. A criança morreu por causa de um número. Nós somos culpados.
Se há uma guerra, você é classificado por um número. Numa pulseira com placa metálica, se não me engano. Ou numa corrente de pescoço, metálica.
Nós vamos lutar contra isso. Cada um é um, sem número. O si-mesmo é apenas o si-mesmo.
E Deus não é número.
Vamos ser gente por favor. Nossa sociedade está nos deixanso secos como um número seco, como um osso branco seco exposto ao sol.
Meu número íntimo é 9, Só...8 Só. 7. Só. (sic). Sem somá-los nem transformá-los em novecentos e oitenta e sete. Estou me classificando como número? Não, a intimidade não deixa. Vejam . tentei várias vezes na vida não ter número e não escapei. O que faz com que precisemos de muito carinho, de nome próprio, de genuinidade. Vamos amar que o amor não tem número. Ou tem?

LISPECTOR, Clarice. A Descoberta do mundo. 3 ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992, p 396-398

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Oficialmente Velho



Leonardo Boff


Neste mês de dezembro completo 70 anos. Pelas condições brasileiras, me torno oficialmente velho. Isso não significa que estou próximo da morte, porque esta pode ocorrer já no primeiro momento da vida. Mas é uma outra etapa da vida, a derradeira. Esta possui uma dimensão biológica, pois irrefreavelmente o capital vital se esgota, nos debilitamos, perdemos o vigor dos sentidos e nos despedimos lentamente de todas as coisas. De fato, ficamos mais esquecidos, quem sabe, impacientes e sensíveis a gestos de bondade que nos levam facilmente às lágrimas,
Mas há um outro lado, mais instigante. A velhice é a última etapa do crescimento humano. Nós nascemos inteiros. Mas nunca estamos prontos. Temos que completar nosso nascimento ao construir a existência, ao abrir caminhos, ao superar dificuldades e ao moldar o nosso destino. Estamos sempre em gênese. Começamos a nascer, vamos nascendo em prestações ao longo da vida até acabar de nascer. Então entramos no silêncio. E morremos.
A velhice é a última chance que a vida nos oferece para acabar de crescer, madurar e finalmente terminar de nascer. Neste contexto, é iluminadora a palavra de São Paulo: "na medida em que definha o homem exterior, nesta mesma medida rejuvenesce o homem interior". A velhice é uma exigência do homem interior. Que é o homem interior? É o nosso eu profundo, o nosso modo singular de ser e de agir, a nossa marca registrada, a nossa identidade mais radical. Esta identidade devemos encará-la face a face.
Ela é pessoalíssima e se esconde atrás de muitas máscaras que a vida nos impõe. Pois a vida é um teatro no qual desempenhamos muitos papéis. Eu, por exemplo, fui franciscano, padre, agora leigo, teólogo, filósofo, professor, conferencista, escritor, editor, redator de algumas revistas, inquirido pelas autoridades doutrinais do Vaticano, submetido ao "silêncio obsequioso" e outros papéis mais. Mas há um momento em que tudo isso é relativizado e vira pura palha. Então deixamos o palco, tiramos as máscaras e nos perguntamos: Afinal, quem sou eu? Que sonhos me movem? Que anjos que habitam? Que demônios me atormentam? Qual é o meu lugar no desígnio do Mistério? Na medida em que tentamos, com temor e tremor, responder a estas indagações vem à lume o homem interior. A resposta nunca é conclusiva; perde-se para dentro do Inefável.
Este é o desafio para a etapa da velhice. Então nos damos conta de que precisaríamos muitos anos de velhice para encontrar a palavra essencial que nos defina. Surpresos, descobrimos que não vivemos porque simplesmente não morremos, mas vivemos para pensar, meditar, rasgar novos horizontes e criar sentidos de vida. Especialmente para tentar fazer uma síntese final, integrando as sombras, realimentando os sonhos que nos sustentaram por toda uma vida, reconciliando-nos com os fracassos e buscando sabedoria. É ilusão pensar que esta vem com a velhice. Ela vem do espírito com o qual vivenciamos a velhice como a etapa final do crescimento e de nosso verdadeiro Natal.
Por fim, importa preparar o grande Encontro. A vida não é estruturada para terminar na morte, mas para se transfigurar através da morte. Morremos para viver mais e melhor, para mergulhar na eternidade e encontrar a Última Realidade, feita de amor e de misericórdia. Aí saberemos finalmente quem somos e qual é o nosso verdadeiro nome.
Nutro o mesmo sentimento que o sábio do Antigo Testamento: "contemplo os dias passados e tenho os olhos voltados para a eternidade".
Por fim, alimento dois sonhos, sonhos de um jovem ancião: o primeiro é escrever um livro só para Deus, se possível com o próprio sangue; e o segundo, impossível, mas bem expresso por Herzer, menina de rua e poetisa:"eu só queria nascer de novo, para me ensinar a viver". Mas como isso é irrealizável, só me resta aprender na escola de Deus. Parafraseando Camões, completo: mais vivera se não fora, para tão longo ideal, tão curta a vida.
Teólogo, filósofo e escritor